Psicologia, adolescência e educação

Automutilação: a forma dolorosa de falar

A sociedade contemporânea é definida como a era da comunicação e da abundância de bens materiais.  Estamos inseridos num mundo onde existe muito barulho e, muitas vezes, fazemos barulho para evitarmos o silêncio. Preenchemos com os objetos e com o barulho as lacunas que nos sugere falta, não presença, solidão. Ora, onde existe o barulho e acumulo de objetos não é possível a partilha, o diálogo, o entendimento, a humanidade. 

Para que haja humanidade é preciso que haja encontro, e os encontros se dão quando um espera do outro algo. Para que haja encontro é necessário demandar. É comum as pessoas fugirem do encontro com os outros e consigo mesmas, fugirem da possibilidade de falar. Por outro lado, quantos necessitam falar e não lhes é dado a palavra, ou não têm como dizer – não encontram palavras. 
A automutilação seria uma dessas formas de gritar, tentativas de se comunicar, de dizer da dor e do sofrimento apesar da falta de palavras ou da falta de escuta. Se por um lado, faltam palavras, talvez,  por outro, hajam excessos que devam ser cortados.
Etimologicamente, de acordo com o Dicionário Dicmax Michaelis (2007), a palavra mutilação vem do baixo-latim mutilatio que significa “ato de mutilar, de cortar um membro” e ainda  “ação de truncar, cortar,  abreviar as palavras” . O verbo mutilare,designa “truncar as palavras, diminuir, reduzir, encurtar” ou mutilaloqui, que significa “pronunciar algumas frases truncadas, comer as palavras”. 
Se reportarmos às designações em  inglês,   termo  cutter  pode  ser  traduzido como “cortador”,  ou  “pessoa  que  se corta”.  Resta interrogar que o que o “cortador” corta? Talvez o “cortador” corte a dor. Assim, automutilar-se seria uma tentativa de diminuir a dor, torná-la reduzida, aliviada. Ocorre que diante do flagelo, o cérebro produz endorfinas para aliviar a dor do corpo e esse alívio é sentido pelo sujeito como um alívio da ansiedade. Logo, para cada pico de ansiedade o sujeito recorre ao corte para sentir o alívio produzido pelo cérebro, tornando a automutilação com isso, um ciclo vicioso. O início do quadro ocorre na adolescência, geralmente entre 13 e 15 anos, num momento em que o jovem vivencia intensa raiva ou angústia, e pode perdurar por muitos anos, pois a pessoa sente-se incapaz de parar com tal prática.
Em muitos dos relatos das pessoas que se cortam, o que se vê é que não conseguem expressar através das palavras a sua dor física ou emocional. As frases saem truncadas, abafadas, mutiladas, faltando algo.
A automutilação, segundo MENNINGER (1934), se organiza em torno de três elementos: (1) autoagressão decorrente do sentimento de culpa devido a um sentimento ambivalente de amor-ódio dirigido a um dos pais; (2) autoerotismo que é gerado por uma descarga libidinal cujo prazer pode ser obtido especialmente através da dor; (3) necessidade de “expiação”, em que a pessoa procura compensar atitudes ou pensamentos com conteúdos sexuais ou agressivos se autopunindo. O sujeito na tentativa de aliviar sua angustia, sua ansiedade, se automutila para atenuar o desejo de morte, buscando um meio de se autopreservar e sentir-se melhor. Assim, para não cometer o suicídio o sujeito vai se automutilando com a intenção de ir escapando da aniquilação total do sujeito.
A automutilação, então, é uma forma primitiva de comunicação em que o sujeito marca no corpo, através do sangue, das cicatrizes e da dor a sua incapacidade para verbalizar a angústia que ele sente. É uma fuga do real da dor de viver.
Mas de que angústia se trata?  MILLER (2005), comenta que segundo Lacan (Seminário 10),  tanto para o neurótico quando para o psicótico, o que causa a angústia é a falta da falta. Assim, o que causa a angústia para o neurótico é não faltar. O neurótico sabe lidar com a falta, com a castração, e sente-se bem com ela. A sua busca de plenitude no Outro o apazigua. Quando não há o que buscar porque não falta ou porque não lhe é permitido demandar, ele se angustia. É necessário que haja o silêncio para a escuta e o espaço para o desejo. Não se deve abundar de barulhos ou de objetos. O excesso adoece.
Já o sujeito psicótico preenche o que seria a falta com seus delírios e alucinações. No seu imaginário não há falta e essa “presença”  massificante do objeto também o angustia. 
A automutilação seria uma forma de aliviar essa angústia, cortando na pele o que sobra, os excessos. Para a psicanálise a automutilação seria uma tentativa de introduzir uma falta, uma castração.
É fácil observar que os automutiladores apresentam-se socialmente superficiais, com certo distanciamento, são naturalmente retraídos, introspectivos e raramente permitem que outras pessoas compartilhem da sua intimidade. Mostram-se por vezes alegres e descontraídos, mas também instáveis e deprimidos. Eles têm dificuldade de fazer contato através do toque com outras pessoas, seja um toque agressivo ou carinhoso. Na sua maioria, tentam esconder as suas marcas e têm vergonha do seu ato de autoflagelo. Sabem que as pessoas reprovam essa atitude e sentem-se excluídos do grupo dos “normais”. Raramente pedem ajuda.
O tratamento da automutilação deve ser feito de forma interdisciplinar. É importante o  cuidado médico, uma vez que determinados cortes podem exigir intervenção cirúrgica ou medicamentosa, mas também necessita do atendimento psiquiátrico e psicológico.  A psicoterapia é essencial porque é o espaço em que ele é autorizado a falar das suas dores físicas,  emocionais e da sua angústia. É onde ele será acolhido na sua individualidade, com toda sua subjetividade. Espera-se que através das palavras que inicialmente surgirão cortadas,  posteriormente se farão inteiras e quem sabe, poderá advir daí o real alívio para o “corte da dor”.
Referencias bibliográficas:
MENNINGER,  Karl.  Man  Against  Himself.  (Originally  published  in  1938).  New  York:
Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 19661
MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário da angústia de Jacques Lacan. In: Opção Lacaniana nº 43. São Paulo: Eólia, 7-91, maio de 2005..