Capítulo I
Pequena Conferência Espírita
Um abade – Permiti-me, senhor, dirigir-vos, a meu turno, algumas
questões?
A.K. – De bom grado, senhor, mas, antes de responder-vos, creio ser
útil fazer-vos conhecer o terreno sobre o qual tenciono me colocar
convosco.
Primeiramente, devo declarar-vos que não procurarei, de nenhum modo,
converter-vos à nossas idéias. Se desejais conhecê-las detalhadamente,
as encontrareis nos livros onde elas estão expostas. Lá podereis
estudá-las com vagar e estareis livre para aceitá-las ou rejeitá-las.
O Espiritismo tem por objetivo combater a incredulidade e suas
funestas conseqüências, dando provas patentes da existência da alma e da
vida futura. Ele se dirige, pois, àqueles que não crêem em nada, ou
que duvidam, e o número deles é grande, como o sabeis. Aqueles que
têm um fé religiosa, e aos quais essa fé basta, dele não têm
necessidade; àquele que diz: "eu creio na autoridade da Igreja, e me
atenho ao que ela ensina, sem nada procurar além dela", o Espiritismo
responde que ele não se impõe a ninguém e não vem forçar nenhuma
convicção.
A liberdade de consciência é uma conseqüência da liberdade de pensar,
que é um dos atributos do homem; o Espiritismo estaria em contradição
com seus princípios de caridade e de tolerância, se ele não a
respeitasse. Aos seus olhos, toda crença, quando sincera e não conduz o
seu próximo ao erro, é respeitável, mesmo que ela fosse errônea. Se
alguém tiver sua consciência empenhada em crer, por exemplo, que é o Sol
que gira, nós lhe diremos: crede se isso vos satisfaz, porque não
impedirá a Terra de girar; mas, da mesma forma que não procuramos
violentar vossa consciência, não procurai violentar a dos outros. Se de
uma crença, inocente em si mesma, fazeis um instrumento de perseguição,
ela torna-se nociva e pode ser combatida.
Tal é, senhor abade, a linha de conduta que tive com os ministros de
diversos cultos que a mim se dirigiram. Quando me questionaram sobre
alguns pontos da doutrina, lhes dei as explicações necessárias,
abstendo-me de discutir certos dogmas com os quais o Espiritismo não tem
preocupações, cada um estando livre em sua apreciação; mas jamais fui
procurá-los no desejo de abalar sua fé mediante uma pressão qualquer.
Aquele que vem a nós como um irmão, como tal o acolhemos; aquele que nos
recusa, nós o deixamos em paz. É o conselho que não cesso de dar aos
espíritas, porque nunca aprovei aqueles que se atribuem a missão de
converter o clero. Sempre lhes disse: semeai no campo dos incrédulos,
porque lá está uma ampla colheita a fazer.
O Espiritismo não se impõe porque, como eu o disse, ele respeita a
liberdade de consciência e sabe que toda crença imposta é superficial e
não dá senão as aparências da fé, mas não a fé sincera. Ele expõe seus
princípios aos olhos de todos, de maneira a que cada um possa formar sua
opinião com conhecimento de causa. Aqueles que o aceitam, padres ou
laicos, o fazem livremente e porque os acham racionais; mas não nos
zangamos de nenhum modo com aqueles que não são da nossa opinião. Se
hoje há luta entre a Igreja e o Espiritismo, temos a consciência
tranqüila de não tê-la provocado.
O padre – Se a Igreja, vendo surgir uma nova doutrina, nela encontra
princípios que, no seu entender, crê dever condenar, contestai-lhe o
direito de discuti-los e de combatê-los, de precaver seus fiéis contra
aquilo que ela considera um erro?
A.K. – De forma alguma contestamos um direito que reclamamos para nós
mesmos. Se ela tivesse se contido nos limites da discussão, nada de
melhor; mas, lede a maioria dos escritos emanados dos seus membros ou
publicados em nome da religião, os sermões que pregaram e aí vereis a
injúria e a calúnia extravasar de todas as partes, e os princípios da
doutrina sempre indigna e maldosamente deturpados. Não se tem ouvido, do
alto do púlpito, seus partidários serem qualificados de inimigos da
sociedade e da ordem pública? aqueles que ela reconduziu para a fé,
anatematizados e rejeitados pela Igreja, pela razão que ela entende
melhor ser incrédulo que crer em Deus e na alma através do Espiritismo?
não se afligiram por não haver para os espíritas as fogueiras da
Inquisição? Em certas localidades, não os apontaram à repreensão dos
seus concidadãos, chegando a fazê-los perseguir e injuriar nas ruas? Não
se impôs, a todos os fiéis, fugirem deles como de pestilentos, desviando
os serviçais de entrarem ao seu serviço? As mulheres não foram
solicitadas a separarem-se de seus maridos, e os maridos de suas
mulheres, por causa do Espiritismo? Não se fez perder seus lugares nos
empregos, retirando aos operários o pão do trabalho e aos necessitados o
pão da caridade porque eram espíritas? Não foram despedidos de certos
asilos até os cegos, porque não quiseram abjurar sua crença? Dizei-me,
senhor abade, está aí a discussão real? Os espíritas opuseram a injúria
pela injúria, o mal pelo mal? Não. A tudo opuseram a calma e a
moderação. A consciência pública já lhes rendeu a justiça de que eles
não foram os agressores.
O padre – Todo homem sensato deplora esses excessos; mas a Igreja não
poderia ser responsável pelo abuso cometido por alguns de seus membros
pouco esclarecidos.
A.K. – Concordo com isso; mas esses membros pouco esclarecidos são os
príncipes da Igreja? Vede a pastoral do bispo de Argel e de alguns
outros. Não foi um bispo que ordenou o auto-de-fé de Barcelona? A
superior autoridade eclesiástica não tem todo o poder sobre os seus
subordinados? Se, pois, ela tolera sermões indignos no púlpito
evangélico, se favorece a publicação de escritos injuriosos e
difamatórios contra uma classe de cidadãos, se não se opõe às
perseguições exercidas em nome da religião, é porque ela os aprova.
Em resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente os espíritas que
voltavam para ela, forçou-os a retrocederem; pela natureza e violência
de seus ataques, ela alargou a discussão e a conduziu para um terreno
novo. O Espiritismo não era senão uma simples doutrina filosófica e foi
ela mesma que o engrandeceu apresentando-o como um inimigo terrível;
enfim, foi ela que o proclamou como uma nova religião. Foi uma
imperícia, mas a paixão não raciocina.
Um livre pensador – Tendes proclamado, a toda hora, a liberdade de
pensamento e de consciência, e declarado que toda crença sincera é
respeitável. O materialismo é uma crença como qualquer outra; por que
não gozaria ele da liberdade que concedeis a todas as outras?
A.K. – Cada um é, seguramente, livre para crer no que lhe agrada, ou
para não crer em nada, e não desculparíamos mais uma perseguição contra
aquele que crê no nada depois da morte, que contra um cismático de uma
religião qualquer. Combatendo o materialismo, nós atacamos, não os
indivíduos, mas uma doutrina que, se é inofensiva para a sociedade
quando se encerra no foro íntimo da consciência de pessoas esclarecidas,
é uma calamidade social, se ela se generaliza.
A crença de que tudo termina para o homem depois da morte, que toda
solidariedade cessa com a vida, o conduz a considerar o sacrifício do
bem-estar presente em proveito de outro como uma intrujice; daí a
máxima: cada um por si durante a vida, uma vez que nada há além dela. A
caridade, a fraternidade, a moral, em uma palavra, não têm nenhuma base,
nenhuma razão de ser. Por que se mortificar, se reprimir, se privar hoje
quando, amanhã talvez, não existiremos mais? A negação do futuro, a
simples dúvida sobre a vida futura, são os maiores estimulantes do
egoísmo, fonte da maioria dos males da Humanidade. É preciso uma virtude
bem grande para se deter sobre a inclinação do vício e do crime, sem
outro freio além da força da vontade. O respeito humano pode conter o
homem do mundo, mas não aquele para o qual o temor da opinião pública é
nulo.
A crença na vida futura, mostrando a perpetuidade das relações entre
os homens, estabelece entre eles uma solidariedade que não termina no
túmulo; ela muda, assim, o curso das idéias. Se essa crença fosse apenas
um espantalho, seria temporária; mas como sua realidade é um fato
adquirido pela experiência, ela está no dever de a propagar e de
combater a crença contrária, no interesse mesmo da ordem social. É isso
o que faz o Espiritismo, e com sucesso, porque dá as provas, e porque,
em definitivo, o homem prefere ter a certeza de viver feliz em um mundo
melhor, como compensação às misérias deste mundo, do que crer estar
morto para sempre. O pensamento de se ver aniquilado para sempre, de
crer os filhos e os seres que nos são caros, perdidos sem retorno, sorri
a um bem pequeno número, crede-me; por isso os ataques dirigidos contra
o Espiritismo em nome da incredulidade têm tão pouco sucesso, e não o
abalaram um instante.
O padre – A religião ensina tudo isso e bastou até o momento; qual é,
pois, a necessidade de uma nova doutrina?
A.K. – Se a religião basta, por que há tantos incrédulos,
religiosamente falando? A religião nos ensina, é verdade, e nos diz para
crer; mas há muitas pessoas que não crêem apenas em palavras. O
Espiritismo prova, e faz ver o que a religião ensina por teoria. Aliás,
de onde vêm essas provas? Da manifestação dos Espíritos. Ora, é provável
que os Espíritos não se manifestem senão com a permissão de Deus; se,
pois, Deus, em sua misericórdia, envia aos homens esse socorro para
tirá-los da incredulidade, é uma impiedade recusá-lo.
O padre – Não discordais, entretanto, que o Espiritismo não está,
sobre todos os pontos, de acordo com a religião.
A.K. – Meu Deus, senhor abade, todas as religiões dirão a mesma
coisa: os protestantes, os judeus, os muçulmanos, assim como os
católicos.
Se o Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, da sua
individualidade e da imortalidade, das penas e das recompensas futuras,
do livre arbítrio do homem; se ele ensinasse que cada um, neste mundo,
não está senão para si e não deve pensar senão em si, ele seria não
somente contrário à religião católica, mas a todas as religiões do
mundo; isso seria a negação de todas as leis morais, bases das
sociedades humanas. Longe disso, os Espíritos proclamam um Deus único,
soberanamente justo e bom; eles dizem que o homem é livre e responsável
por seus atos, recompensado e punido segundo o bem ou o mal que fez;
eles colocam acima de todas as virtudes a caridade evangélica e esta
regra sublime ensinada pelo Cristo: agir para com os outros como
gostaríamos que os outros agissem para conosco. Não estão aí os
fundamentos da religião? Eles fazem mais: nos iniciam nos mistérios da
vida futura, que para nós não é mais uma abstração, mas uma realidade,
porque são aqueles mesmos que conhecemos que vêm nos descrever suas
situações, nos dizer como e porque eles sofrem ou são felizes. Que há
nisso de anti-religioso? Essa certeza do futuro, de reencontro com
aqueles que amamos, não é uma consolação? Essa grandiosidade da vida
espiritual que é nossa essência, comparada às mesquinhas preocupações da
vida terrestre, não é própria para elevar nossa alma e a nos encorajar
ao bem?
O padre – Eu concordo que para as questões gerais, o Espiritismo está
conforme as grandes verdades do Cristianismo; mas ocorre o mesmo do
ponto de vista dos dogmas? Ele não contradiz certos princípios que a
Igreja nos ensina?
A.K. – O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência e não se ocupa com
questões dogmáticas. Essa ciência tem conseqüências morais como todas as
ciências filosóficas; são essas conseqüências boas ou más? Pode-se
julgá-las pelos princípios gerais que acabo de lembrar. Algumas pessoas
estão equivocadas sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. A questão é
bastante grave e merece algum desenvolvimento.
Citemos primeiro uma comparação: a eletricidade, estando na Natureza,
existiu de todos os tempos e de todos os tempos também produziu os
efeitos que nós conhecemos e muitos outros efeitos que não conhecemos
ainda. Os homens, na ignorância da causa verdadeira, explicaram esses
efeitos de uma maneira mais ou menos bizarra. A descoberta da
eletricidade e das suas propriedades veio desmoronar uma multidão de
teorias absurdas, lançando luz sobre mais de um mistério da Natureza. O
que a eletricidade e as ciências físicas em geral fizeram por certos
fenômenos, o Espiritismo fez por fenômenos de uma outra ordem.
O Espiritismo está fundado sobre a existência de um mundo invisível,
formado de seres incorpóreos que povoam o espaço, e que não são outros
senão as almas daqueles que viveram sobre a Terra, ou em outros globos,
onde deixaram seu envoltório material. São a esses seres que damos o
nome de Espíritos. Eles nos rodeiam permanentemente, exercendo sobre os
homens, com o seu desconhecimento, uma grande influência; eles
desempenham um papel muito ativo no mundo moral, e, até um certo ponto,
no mundo físico. O Espiritismo, pois, está na Natureza e pode-se dizer
que, em uma certa ordem de idéias, é uma potência, como a eletricidade o
é em outro ponto de vista, como a gravitação o é em outro. Os fenômenos,
dos quais o mundo invisível é a fonte, são efeitos produzidos em todos
os tempos; eis porque a história de todos os povos deles faz menção.
Somente que, em sua ignorância, como para a eletricidade, os homens
atribuíram esses fenômenos a causas mais ou menos racionais, e deram a
esse respeito livre curso à imaginação.
O Espiritismo, melhor observado depois que se vulgarizou, veio lançar
luz sobre uma multidão de questões até aqui insolúveis ou mal
compreendidas. Seu verdadeiro caráter, pois, é o de uma ciência, e não
de uma religião; e a prova disso é que conta entre seus adeptos homens
de todas as crenças, que não renunciaram por isso às suas convicções:
católicos fervorosos que não praticam menos todos os deveres de seu
culto, quando não são repelidos pela Igreja, protestantes de todas as
seitas, israelitas, muçulmanos, e até budistas e brâmanes. Ele repousa,
pois, sobre princípios independentes de toda questão dogmática. Suas
conseqüências morais estão no sentido do Cristianismo, porque o
Cristianismo é, de todas as doutrinas, a mais esclarecida e a mais pura,
e é por essa razão que, de todas as seitas religiosas do mundo, os
cristãos estão mais aptos a compreendê-lo em sua verdadeira essência.
Pode-se, por isso, fazer-lhe uma censura? Cada um, sem dúvida, pode
fazer uma religião de suas opiniões, interpretar à vontade as religiões
conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja, há distância.
O padre – Não fazeis, entretanto, as evocações depois de uma fórmula
religiosa?
A.K. – Seguramente colocamos um sentimento de religiosidade nas
evocações e nas nossas reuniões, mas não há fórmula sacramental; para os
Espíritos o pensamento é tudo e a forma nada. Nós os chamamos em nome de
Deus porque cremos em Deus, e sabemos que nada se faz neste mundo sem
sua permissão, e que se Deus não lhes permitir vir, eles não virão.
Procedemos em nossos trabalhos com calma e recolhimento, porque é uma
condição necessária para as observações, e, em segundo lugar, porque
conhecemos o respeito que se deve àqueles que não vivem mais sobre a
Terra, qualquer que seja sua condição, feliz ou infeliz, no mundo dos
Espíritos. Fazemos um apelo aos bons Espíritos porque, sabendo que há
bons e maus, resulta que estes últimos não vêem se misturar
fraudulentamente nas comunicações que recebemos. O que tudo isso prova?
Que nós não somos ateus, mas isso não implica, de nenhum modo, que
sejamos religiosos.
O padre – Pois bem! que dizem os Espíritos superiores com respeito à
religião? Os bons devem nos aconselhar, nos guiar. Suponho que eu não
tenha nenhuma religião e queira uma. Se eu lhes perguntar: me
aconselhais que me torne católico, protestante, anglicano, quaker,
judeu, maometano ou mórmon, que responderão eles?
A.K. – Há dois pontos a considerar nas religiões: os princípios
gerais, comuns a todos, e os princípios particulares a cada uma. Os
primeiros são aqueles de que falamos a toda hora, e que todos os
Espíritos proclamam qualquer que seja sua posição. Quanto aos segundos,
os Espíritos vulgares, sem serem maus, podem ter preferências e
opiniões; eles podem preconizar tal ou tal forma. Eles podem, pois,
encorajar em certas práticas, seja por convicção pessoal, seja porque
conservam as idéias da vida terrestre, seja por prudência, para não
assustar consciências tímidas. Credes, por exemplo, que um Espírito
esclarecido, fosse mesmo Fénelon, dirigindo-se a um muçulmano, irá
desastradamente dizer-lhe que Maomé era um impostor, e que estará
perdido se não se tornar cristão? Ele se guardará disso, porque será
repelido.
Os Espíritos superiores, e quando não são solicitados por nenhuma
consideração especial, não se preocupam com questões de detalhes. Eles
se limitam a dizer: "Deus é bom e justo; ele não quer senão o bem; a
melhor de todas as religiões, pois, é aquela que não ensina senão
conforme a bondade e a justiça de Deus; que dá de Deus uma idéia mais
ampla, mais sublime, e não o rebaixa emprestando-lhe a pequenez e as
paixões da Humanidade; que torna os homens bons e virtuosos e lhes
ensina a se amarem todos como irmãos; que condena todo mal feito ao
próximo; que não autoriza a injustiça sob qualquer forma ou pretexto que
seja; que não prescreve nada de contrário às leis imutáveis da Natureza,
porque Deus não pode se contradizer; aquela cujos ministros dão o melhor
exemplo de bondade, de caridade e de moralidade; aquela que tende a
combater melhor o egoísmo e a lisonjear menos o orgulho e a vaidade dos
homens; aquela, enfim, em nome da qual se comete menos mal, porque uma
boa religião não pode ser o pretexto de um mal qualquer; ela não deve
lhe deixar nenhuma porta aberta, nem diretamente, nem pela
interpretação.
Vede, julgai e escolhei.
O padre – Suponho que certos pontos da doutrina católica sejam
contestados pelos Espíritos, que considerais como superiores. Suponho
mesmo que esses pontos sejam errados; aquele para quem eles são artigos
de fé, errados ou certos, que os pratica em conseqüência, pode essa
crença, segundo esses mesmos Espíritos, ser prejudicial à sua salvação?
A.K. – Seguramente não, se essa crença não o afasta da prática do
bem, se, ao contrário, ela o incita a isso; enquanto que, a crença mais
bem fundada, o prejudicará, evidentemente, se ela lhe é ocasião para a
prática do mal, de falta de caridade para com seu próximo, se o torna
duro e egoísta, porque, então, ele não age conforme a lei de Deus, e
Deus considera o pensamento antes dos atos. Quem ousaria sustentar o
contrário?
Pensais, por exemplo, que um homem que cresse perfeitamente em Deus,
e que, em nome de Deus, cometesse atos desumanos ou contrários à
caridade, sua fé lhe seja muito proveitosa? Não é tanto mais culpado
quanto maiores os meios de esclarecimentos?
O padre – Assim, o católico fervoroso que cumpre escrupulosamente os
deveres do seu culto não é censurado pelos Espíritos?
A.K. – Não, se é para ele uma questão de consciência, se o faz com
sinceridade; sim, mil vezes sim, se é por hipocrisia, e se não há nele
senão uma piedade aparente.
Os Espíritos superiores, aqueles que têm por missão o progresso da
Humanidade, se erguem contra todos os abusos que podem retardar esse
progresso, qualquer que seja a sua natureza, e quaisquer que sejam os
indivíduos ou as classes sociais que deles se aproveitam. Ora, não
negareis que a religião disso não esteve sempre isenta; se, entre seus
ministros, há os que cumprem sua missão com um devotamento todo cristão,
que a fazem grande, bela e respeitável, concordareis que nem todos
cumpriram sempre a santidade do seu ministério. Os Espíritos eliminam o
mal por toda parte onde ele se encontre; assinalar os abusos da religião
é atacá-la? Ela não tem maiores inimigos que aqueles que os defendem,
porque são esses abusos que fazem nascer o pensamento de que alguma
coisa de melhor pode substituí-la. Se a religião corresse um perigo
qualquer, seria necessário atribuí-lo àqueles que dela dão uma falsa
idéia, transformando-a numa arena das paixões humanas, e que a exploram
em proveito da sua ambição.
O padre – Dizeis que o Espiritismo não discute os dogmas, e, todavia,
admite certos pontos combatidos pela Igreja, tais como, por exemplo, a
reencarnação, a presença do homem sobre a Terra antes de Adão; ele nega
a eternidade das penas, a existência dos demônios, o purgatório, o fogo
do inferno.
A.K. – Esses pontos foram discutidos durante muito tempo, e não foi o
Espiritismo que os questionou; são opiniões das quais algumas mesmo são
contestadas pela teologia e que o futuro julgará. Um grande princípio os
domina a todos: a prática do bem, que é a lei superior, a condição
sine qua non do nosso futuro, como nos prova o estado dos Espíritos
que se comunicam conosco. A espera de que a luz seja feita para vós
sobre essas questões, crede, se quiserdes, nas chamas e nas torturas
materiais, se isso pode vos impedir de fazer o mal: isso não as tornará
mais reais se não existem. Acreditai que temos uma só existência
corporal, se vos agrada: isso não impedirá de renascer aqui ou alhures,
se assim deve ser, malgrado vós. Acreditai que o mundo foi criado, em
todas as suas partes, em seis vezes vinte e quatro horas, se é essa
vossa opinião: isso não impedirá a Terra de trazer escrito em suas
camadas geológicas a prova contrária. Se quiserdes, acreditai que Josué
deteve o sol: isso não impedirá a Terra de girar. Acreditai que o homem
não está sobre a Terra senão há seis mil anos: isso não impedirá aos
fatos de mostrarem sua impossibilidade. E que direis se, um belo dia,
essa inexorável geologia venha demonstrar por marcas patentes a
anterioridade do homem, como demonstrou tantas outras coisas? Acreditai,
pois, em tudo o que quereis, mesmo no diabo, se essa crença pode vos
tornar bom, humano e caridoso para com os vossos semelhantes. O
Espiritismo, como doutrina moral, não impõe senão uma coisa: a
necessidade da prática do bem e de não fazer o mal. É uma ciência de
observação que, repito-o, tem conseqüências morais, e essas
conseqüências são a confirmação e a prova dos grandes princípios da
religião; quanto às questões secundárias, ele as deixa à consciência de
cada um.
Anotai bem, senhor, que alguns dos pontos divergentes, dos quais
acabais de falar, o Espiritismo não os contesta, em princípio. Se
tivésseis lido tudo o que escrevi sobre esse assunto, teríeis visto que
ele se limita a lhes dar uma explicação mais lógica e mais racional que
aquela que lhes dão vulgarmente.
É assim, por exemplo, que ele não nega o purgatório, mas lhe
demonstra, ao contrário, a necessidade e a justiça, indo mais além ao
defini-lo. O inferno foi descrito como uma imensa fornalha; mas é assim
que o entende a alta teologia? Evidentemente não; ela diz muito bem que
é uma figura e que o fogo no qual se queima é um fogo moral, símbolo das
dores maiores. Quanto à eternidade das penas, se fosse possível pôr a
questão em votação para conhecer a opinião íntima de todos os homens em
estado de raciocinar ou de compreender, mesmo entre os mais religiosos,
ver-se-ia de que lado está a maioria, porque a idéia de uma eternidade
de suplícios é a negação da infinita misericórdia de Deus.
Eis, de resto, o que diz a Doutrina Espírita a esse respeito:
A duração do castigo está subordinada ao aprimoramento do Espírito
culpado. Nenhuma condenação por tempo determinado é pronunciada contra
ele. O que Deus exige para pôr termo ao sofrimento, é o arrependimento,
a expiação e a reparação, em uma palavra, um aprimoramento sério,
efetivo, e um retorno sincero ao bem. O Espírito tem, assim, o arbítrio
de sua própria sorte; ele pode prolongar seus sofrimentos pela sua
obstinação no mal, abrandá-los ou abreviá-los pelos seus esforços em
fazer o bem.
A duração do castigo estando subordinada ao arrependimento, disso
resulta que o Espírito culpado que não se arrependesse e não se
melhorasse jamais, sofreria sempre, e que, para ele, a pena seria
eterna. A eternidade das penas, pois, deve-se entender no sentido
relativo e não no sentido absoluto.
Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é de, não podendo
ver o termo da sua situação, crer que sofrerão sempre; é para eles um
castigo. Mas, desde que sua alma se abra ao arrependimento, Deus lhes
faz entrever um raio de esperança.
Esta doutrina, evidentemente, está mais conforme a justiça de Deus,
que pune enquanto se persiste no mal e perdoa quando se entra no bom
caminho. Quem a imaginou? Nós? Não; são os Espíritos que a ensinam e a
provam pelos exemplos que colocam diariamente sob nossos olhos.
Os Espíritos não negam, pois, as penas futuras, uma vez que descrevem
seus próprios sofrimentos; e esse quadro nos toca mais que os das chamas
perpétuas, porque tudo nele é perfeitamente lógico. Compreende-se que
isso é impossível, que deve sê-lo assim, que essa situação é uma
conseqüência toda natural das coisas; pode ser aceita pelo pensador
filósofo, porque nada nisso repugna a razão. Eis porque as crenças
espíritas conduziram ao bem uma multidão de pessoas, mesmo
materialistas, que o medo do inferno, tal como nos é pintado, não tinha
podido deter.
O padre – Admitindo vosso raciocínio, pensais que falta ao vulgo
imagens mais apavorantes do que uma filosofia que ele não pode
compreender?
A.K. – Está aí um erro que fez mais de um materialista ou, pelo
menos, desviou mais de um homem da religião. Chega um momento em que
essas imagens não assustam mais e, então, as pessoas que não se
aprofundam, rejeitando uma parte, rejeitam o todo, porque dizem: se me
ensinaram como uma verdade incontestável um princípio que é falso, se me
deram uma imagem, uma figura pela realidade, quem me diz que o resto é
mais verdadeiro? Se, ao contrário, a razão, num crescente, não repele
nada, a fé se fortifica. A religião ganhará sempre seguindo o progresso
das idéias; se nunca ela devesse periclitar, seria porque os homens não
teriam avançado e ela permanecido estacionária. É equivocar-se com a
época crer que se pode, hoje, conduzir os homens pelo temor do demônio e
das torturas eternas.
O padre – A Igreja, com efeito, reconhece hoje que o inferno material
é uma figura; mas isso não exclui a existência dos demônios; sem eles,
como explicar a influência do mal que não pode vir de Deus?
A.K. – O Espiritismo não admite os demônios no sentido vulgar da
palavra, mas admite os maus Espíritos que não valem melhor e que fazem
igualmente o mal, suscitando maus pensamentos; somente ele diz que esses
não são seres à parte, criados para o mal e perpetuamente devotados ao
mal, espécie de párias da criação e carrascos do gênero humano; são
seres atrasados, ainda imperfeitos, mas aos quais Deus reserva o futuro.
Isso está de acordo com a Igreja Católica grega que admite a conversão
de Satã, alusão ao melhoramento dos maus Espíritos. Anotai ainda que a
palavra demônio não implica a idéia de maus Espíritos senão pela
acepção moderna que lhe foi dada, porque a palavra grega daímôn
significa gênio, inteligência. Ora, admitir a comunicação dos
maus Espíritos é reconhecer, em princípio, a realidade das
manifestações. É preciso saber se só eles se comunicam, como o afirma a
Igreja para motivar a proibição que faz de comunicar-se com os
Espíritos. Invocamos aqui o raciocínio e os fatos. Se Espíritos,
quaisquer que sejam, se comunicam, não é senão com a permissão de Deus:
compreender-se-ia que ele permitisse apenas aos maus? Como? enquanto que
deixaria a estes toda a liberdade de vir enganar os homens, interditaria
aos bons de virem contrabalançar, neutralizar suas perniciosas
doutrinas? Crer que seja assim não seria colocar em dúvida seu poder e
sua bondade e fazer de Satã um rival da Divindade? A Bíblia, o
Evangelho, os Pais da Igreja, reconhecem perfeitamente a possibilidade
de comunicação com o mundo invisível, e desse mundo os bons não estão
excluídos; por que, pois, o seriam hoje? Aliás, a Igreja admitindo a
autenticidade de certas aparições e comunicações de santos, exclui por
isso mesmo a idéia de que não se pode ter relações senão com os maus
Espíritos. Seguramente, quando as comunicações não encerram senão coisas
boas, como a pregação da moral evangélica mais pura e mais sublime, a
abnegação, o desinteresse e o amor ao próximo; quando aí se combate o
mal, com qualquer coloração que ele se apresente, é racional crer-se que
o Espírito maligno vem assim realizar seu trabalho?
O padre – O Evangelho nos ensina que o anjo das trevas, ou Satã, se
transforma em anjo de luz para seduzir os homens.
A.K. – Satã, segundo o Espiritismo e a opinião de muitos filósofos
cristãos, não é um ser real; é a personificação do mal, como outrora
Saturno era a personificação do tempo. A Igreja prende à letra essa
figura alegórica; é um negócio de opinião que eu não discutirei.
Admitamos, por um instante, que Satã seja um ser real; a Igreja, à força
de exagerar seu poder para amedrontar, chega a um resultado todo
contrário, quer dizer, à destruição, não só de todo medo mas também de
toda crença em sua pessoa, segundo o provérbio: "quem quer muito provar
não prova nada". Ela o representa como eminentemente fino, sagaz e
astuto, e na questão do Espiritismo o faz representar o papel de um tolo
e de um inábil.
Uma vez que o objetivo de Satã é alimentar o inferno com suas vítimas
e arrebatar almas de Deus, compreende-se que ele se dirija àqueles que
estão no caminho do bem para os induzir ao mal, e que por isso ele se
transforme, segundo uma muito bela alegoria, em anjo da luz, quer dizer,
simule hipocritamente a virtude; mas que ele deixe escapar aqueles que
já tem em suas garras é o que não se compreende. Aqueles que não crêem
nem em Deus, nem em sua alma, que desprezaram a prece e estão
mergulhados no vício, estão para ele tanto quanto é possível estar; nada
mais há a fazer para os afundar mais na lama; ora, incitá-los a retornar
a Deus, a lhe pedir, a submeter-se à sua vontade, encorajá-los a
renunciar ao mal mostrando-lhe a felicidade dos eleitos, e a triste
sorte que espera os maus, seria ato de um tolo, mais estúpido que se
desse a liberdade a pássaros engaiolados com o pensamento de os
recuperar em seguida.
Há, pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demônios uma
contradição que fere o homem sensato; por isso não se persuadirá jamais
que os Espíritos que reconduzem a Deus aqueles que o negavam, ao bem,
aqueles que faziam o mal, que consolam os aflitos, dão força e coragem
aos fracos; que, pela sublimidade dos seus ensinamentos elevam a alma
acima da vida material, sejam os subordinados de Satã, e que, por esse
motivo, deve-se interditar toda relação com o mundo invisível.
O padre – Se a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos
mortos é porque são contrárias à religião, como estão formalmente
condenadas pelo Evangelho e por Moisés. Este último, pronunciando a pena
de morte contra essas práticas, prova quanto elas são repreensíveis aos
olhos de Deus.
A.K. – Eu vos peço perdão, mas essa proibição não está em nenhuma
parte no Evangelho; ela está somente na lei mosaica. Trata-se, pois, de
saber se a Igreja coloca a lei mosaica acima da lei evangélica, quer
dizer, se ela é mais judaica que cristã. Observe-se mesmo que de todas
as religiões, a que faz menos oposição ao Espiritismo é a Judaica, e que
ela não tem invocado a lei de Moisés, sobre as quais se apóiam as seitas
cristãs, contra as evocações. Se as prescrições bíblicas são o código da
fé cristã, por que interditar a leitura da Bíblia? Que se diria se se
proibisse a um cidadão estudar o código das leis de seu país?
A proibição feita por Moisés tinha então sua razão de ser, porque o
legislador hebreu queria que seu povo rompesse com todos os costumes
adquiridos entre os Egípcios, e que este, do qual se trata aqui, era um
motivo de abusos. Não se evocavam os mortos por respeito e afeição por
eles, nem com um sentimento de piedade; era um meio de adivinhação,
objeto de um tráfico vergonhoso explorado pelo charlatanismo e a
superstição; portanto, Moisés teve razão em proibi-la. Se ele pronunciou
contra esse abuso uma penalidade severa, é que precisava de meios
rigorosos para governar seu povo indisciplinado; também a pena de morte
está prodigalizada na sua legislação. Apóia-se erradamente sobre a
severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade da evocação
dos mortos.
Se a proibição de evocar os mortos veio do próprio Deus, como
pretende a Igreja, deve ter sido Deus quem editou a pena de morte contra
os infratores. A pena tem, pois, uma origem tão sacra quanto a
proibição; por que não a conservaram? Moisés promulgou todas as suas
leis em nome de Deus, e por sua ordem. Se se crê que Deus seja seu
autor, por que não são elas mais observadas? Se a lei de Moisés é para a
Igreja um artigo de fé sobre algum ponto, por que não o é sobre todos?
Por que a ela recorrer naquilo que tem necessidade e repeli-la no que
não convém? Por que não segui-la em todas as suas prescrições, a
circuncisão, entre outras, que Jesus suportou e não aboliu?
Havia na lei mosaica duas partes: primeiro, a lei de Deus, resumida
nas tábuas do Sinai, e que permaneceu porque era divina e o Cristo não
fez senão desenvolvê-la; segundo, a lei civil ou disciplinar, apropriada
aos costumes da época e que o Cristo aboliu.
Hoje, as circunstâncias não são as mesmas e a proibição de Moisés não
tem mais cabimento. Aliás, se a Igreja proíbe evocar os mortos, pode ela
impedir que eles venham sem que sejam chamados? Não se vê todos os dias
pessoas que jamais se ocuparam com o Espiritismo, como se via antes que
ele fosse discutido, ter manifestações de todos os gêneros?
Outra contradição: se Moisés proibiu a evocação dos Espíritos dos
mortos, é porque esses Espíritos poderiam vir, de outro modo a proibição
teria sido inútil. Se eles podiam vir naquele tempo, podem ainda hoje;
se eles são os Espíritos dos mortos, não são, pois, exclusivamente
demônios. É preciso ser lógico antes de tudo.
O padre – A Igreja não nega que os bons Espíritos possam se
comunicar, uma vez que reconhece que os santos se manifestaram; ela,
porém, não pode considerar como bons os que vêm contradizer seus
princípios imutáveis. Os Espíritos ensinam as penas e as recompensas
futuras, mas não ensinam como ela; só ela pode julgar seus ensinamentos
e discernir os bons dos maus.
A.K. – Eis a grande questão. Galileu foi acusado de heresia e de ser
inspirado pelo demônio, porque revelou uma lei da Natureza provando o
erro de uma crença que se acreditava inatacável; fossem considerados
como bons aqueles que vêm contradizer todos os pontos arraigados
na opinião exclusiva da Igreja, ou não tivessem proclamado a liberdade
de consciência e condenado certos abusos, eles teriam sido os bem-vindos
e não seriam qualificados de demônio.
Tal é também a razão pela qual todas as religiões, os muçulmanos
tanto quanto os católicos, se crêem na posse exclusiva da verdade
absoluta, considerando como obra do demônio toda doutrina que não
coincide inteiramente com seu ponto de vista. Ora, os Espíritos não vêm
destruir a religião mas, como Galileu, revelar novas leis da Natureza.
Se alguns pontos de fé passam por isso, é que, da mesma forma que a
crença no movimento do Sol, eles estão em contradição com essas leis. A
questão é de saber se um artigo de fé pode anular uma lei da Natureza,
que é obra de Deus; e se, essa lei reconhecida, não é mais sábio
interpretar o dogma no sentido da lei ao invés de atribuir esta ao
demônio.
O padre – Passemos sobre a questão dos demônios, pois eu sei que ela
é diversamente interpretada pelos teólogos. Mas o sistema da
reencarnação me parece mais difícil conciliar com os dogmas, porque ele
não é uma outra coisa senão a metempsicose renovada de Pitágoras.
A.K. – Este não é o momento de discutir uma questão que exigiria um
longo desenvolvimento; encontrá-la-eis tratada em O Livro dos
Espíritos e em A Moral do Evangelho Segundo o Espiritismo
(1). Eu não direi sobre isso, pois, senão duas palavras.
(1) Ver O Livro dos Espíritos, nº 166 e seguintes, idem
222 e 1010. A Moral do Evangelho, cap. IV e V.
A metempsicose dos antigos consistia na transmigração da alma do
homem nos animais, o que implicava uma degradação. De resto, essa
doutrina não era o que se acredita vulgarmente. A transmigração nos
animais não era considerada como uma condição inerente à natureza da
alma humana, mas como um castigo temporário; é assim que as almas dos
assassinos passariam no corpo de animais ferozes para aí receberem sua
punição; a dos impudicos nos porcos e nos javalis; as dos inconstantes e
dos avoados, nos pássaros; as dos preguiçosos e dos ignorantes nos
animais aquáticos. Depois de alguns milhares de anos, mais ou menos
segundo a culpabilidade dessa espécie de prisão, a alma reentraria na
Humanidade. A encarnação animal não era, pois, uma condição absoluta, e
ela se aliava, como se vê, à reencarnação humana, e a prova disso é que
a punição dos homens tímidos consistia em passar no corpo de mulheres
expostas ao desprezo e às injúrias. (1) Era uma espécie de espantalho
para os simples, bem mais que um artigo de fé entre os filósofos. Da
mesma forma que se diz à crianças: "se sois maus o lobo vos comerá", os
antigos diziam aos criminosos: "tornar-vos-eis lobos". Hoje se lhes diz:
"o diabo vos tomará e vos carregará para o inferno".
(1) Ver A pluralidade das existências da alma, por
Pezzani.
A pluralidade das existências, segundo o Espiritismo, difere
essencialmente da metempsicose, no sentido de que não admite a
encarnação da alma nos animais, mesmo como punição. Os Espíritos ensinam
que a alma não retrograda, mas que progride sem cessar. Suas diferentes
existências corporais se realizam na Humanidade; cada existência é para
ela um passo adiante na senda do progresso intelectual e moral, o que é
bem diferente. Não podendo adquirir um desenvolvimento completo em uma
única existência, freqüentemente abreviada por causas acidentais, Deus
lhe permite continuar em uma nova encarnação a tarefa que ela não pôde
acabar, ou de recomeçar a que fez mal. A expiação na vida corporal
consiste nas tribulações que aí se suporta.
Quanto à questão de saber se a pluralidade das existências é, ou não,
contrária a certos dogmas da Igreja, eu me limitarei a dizer isto:
De duas coisas uma, ou a reencarnação existe ou não existe; se ela
existe é porque está nas leis da Natureza. Para provar que ela não
existe seria preciso provar que ela é contrária, não aos dogmas, mas a
essas leis, e que se pode encontrar uma outra que explique mais
claramente e mais logicamente, as questões que só ela pode resolver.
De resto, é fácil demonstrar que certos dogmas aí encontram uma
sanção racional que os faz aceitos por aqueles que os repeliam por não
compreendê-los. Não se trata, pois, de destruir, mas de interpretar, o
que acontecerá mais tarde pela força das coisas. Aqueles que não
quiserem aceitar a interpretação estarão perfeitamente livres, como
estão, hoje, de crer que é o Sol que gira ao redor da Terra. A idéia da
pluralidade das existências se vulgariza com uma espantosa rapidez em
razão de sua extrema lógica e da sua conformidade com a justiça de Deus.
Quando ela for reconhecida como verdade natural e for aceita por todo o
mundo, que fará a Igreja?
Em resumo, a reencarnação não é um sistema imaginado pelas
necessidades de uma causa, nem uma opinião pessoal; é, ou não é, um
fato. Se está demonstrado que certas coisas que existem são
materialmente impossíveis sem a reencarnação, é preciso admitir que elas
são o fato da reencarnação, pois se ela está na Natureza, não
poderia ser anulada por uma opinião contrária.
O padre – Aqueles que não crêem nos Espíritos e em suas
manifestações, são, no dizer dos Espíritos, menos dotados na vida
futura?
A.K. – Se essa crença fosse indispensável à salvação dos homens, em
que se tornariam aqueles que, desde que o mundo existe, não a puderam
ter, e aqueles que, por muito tempo ainda, morrerão sem a ter? Deus pode
lhes fechar a porta do futuro? Não; os Espíritos que nos instruem são
mais lógicos que isso e nos dizem: Deus é soberanamente justo e bom, e
não faz depender a sorte futura do homem, de condições independentes da
sua vontade; eles não dizem: fora do Espiritismo não há salvação,
mas como o Cristo: fora da caridade não há salvação.
O padre – Então, permiti-me dizer-vos que, desde o momento em que os
Espíritos não ensinam senão os princípios da moral que encontramos no
Evangelho, eu não vejo que utilidade pode ter o Espiritismo, uma vez que
podíamos nos salvar antes e que ainda podemos fazê-lo sem ele. Não seria
o mesmo se os Espíritos viessem ensinar algumas grandes verdades novas,
alguns princípios que mudassem a face do mundo, como fez o Cristo. Pelo
menos era só o Cristo, sua doutrina era única, enquanto que os Espíritos
são milhares que se contradizem; uns dizem branco, outros preto; de onde
seguiu-se que, desde o princípio, seus partidários formam já várias
seitas. Não seria melhor deixar os Espíritos tranqüilos e nos atermos ao
que temos?
A.K. – Errais, senhor, em não sair do vosso ponto de vista e de tomar
a Igreja como único critério dos conhecimentos humanos. Se Cristo disse
a verdade, o Espiritismo não podia dizer outra coisa e, em lugar de lhe
lançar pedras, se deveria acolhê-lo como um poderoso auxiliar que veio
confirmar, por todas as vozes de além-túmulo, as verdades fundamentais
da religião, combatidas pela incredulidade. Que o materialismo o
combata, isso se compreende; mas que a Igreja se ligue contra ele com o
materialismo, é menos concebível. O que é de todo inconseqüente é que
ela qualifica de demoníaco um ensinamento que se apóia sobre a mesma
autoridade, e proclama a missão divina do fundador do Cristianismo.
Mas Cristo disse tudo? podia tudo revelar? Não, porque ele mesmo
disse: "teria ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as
compreenderíeis, por isso vos falo por parábolas". O Espiritismo vem,
hoje que o homem está maduro para o compreender, completar e explicar o
que Cristo não fez senão esflorar, ou não disse senão sob a forma
alegórica. Direis, sem dúvida, que o mérito dessa explicação pertence à
Igreja. Mas a qual? à Igreja romana, grega ou protestante? Uma vez que
elas não estão de acordo, cada uma explicou no seu sentido e reivindicou
esse privilégio. Qual aquela que religou todos os cultos dissidentes?
Deus, que é sábio, prevendo que os homens aí misturariam suas paixões e
seus preconceitos, não quis lhes confiar os cuidados dessa nova
revelação: disso encarregou os Espíritos, seus mensageiros, que a
proclamam sobre todos os pontos do globo, e isso fora de todo culto
particular, a fim de que ela possa se aplicar a todos, e que ninguém a
desvie em proveito próprio.
Por outro lado, os diversos cultos cristãos não estão em nada
afastados do caminho traçado pelo Cristo? Seus preceitos de moral são
escrupulosamente observados? Não se tem desvirtuado suas palavras para
fazê-las um apoio da ambição e das paixões humanas, que são por elas
condenadas? Ora, o Espiritismo, pela voz dos Espíritos enviados de Deus,
vem chamar à estrita observação de seus preceitos aqueles que deles se
afastam; não seria esse último motivo que o faz qualificar de obra
satânica?
Erradamente, dais o nome de seitas a algumas divergências de
opiniões relacionadas com os fenômenos espíritas. Não é de espantar que,
no início de uma ciência, quando para muitos as observações eram ainda
incompletas, tenham surgido teorias contraditórias, mas essas teorias
repousam sobre detalhes e não sobre o princípio fundamental. Elas podem
constituir escolas que explicam certos fatos à sua maneira, mas
não têm mais de seitas que os diferentes sistemas que dividem os nossos
sábios sobre as ciências exatas: em medicina, física, etc. Suprimi,
pois, a palavra seita que é de todo imprópria no caso presente.
Aliás, desde sua origem, o próprio Cristianismo não deu nascimento a uma
multidão de seitas? Por que a palavra de Cristo não foi bastante
poderosa para impor silêncio a todas as controvérsias? Por que ela é
suscetível de interpretações que dividem, ainda hoje, os Cristãos em
diferentes Igrejas, que pretendem ser as únicas detentoras da verdade
necessária à salvação, se detestam cordialmente e se anatematizam em
nome do seu Divino Mestre, que não pregou senão o amor e a caridade? A
fraqueza dos homens, direis? seja; por que quereis que o Espiritismo
triunfe subitamente dessa fraqueza e transforme a Humanidade como por
encantamento?
Eu me encaminho para a questão de utilidade. Dissestes que o
Espiritismo não ensina nada de novo; é um erro. Ele ensina muito àqueles
que não se detêm em superficialidades. Tivesse apenas substituído a
máxima: fora da caridade não há salvação, em lugar de fora da
Igreja não há salvação que os divide, e já teria marcado uma nova
era da Humanidade.
Dissestes que se poderia passar sem ele; de acordo; como se poderia
passar sem uma multidão de descobertas científicas. Os homens também se
comportavam bem antes da descoberta de todos os novos planetas; antes
que se tivessem calculado os eclipses; antes que se conhecesse o mundo
microscópico e cem outras coisas. O camponês, para viver e produzir seu
trigo, não tem necessidade de saber o que é um cometa. Todavia, ninguém
nega que todas essas coisas alargam o círculo de idéias e nos fazem
penetrar mais além nas leis da Natureza. Ora, o mundo dos Espíritos é
uma dessas leis, que o Espiritismo nos faz conhecer ensinando-nos a
influência que exerce sobre o mundo corporal; supondo-se que a isso se
limite sua utilidade, já não seria bastante a revelação de semelhante
força?
Vejamos, agora, sua influência moral. Admitamos que ele não ensine
absolutamente nada de novo a esse respeito; qual é o maior inimigo da
religião? O materialismo, porque o materialismo não crê em nada; ora, o
Espiritismo é a negação do materialismo que não tem mais razão de ser.
Não é mais pelo raciocínio, pela fé cega, que se diz ao materialista que
tudo não termina com seu corpo, mas pelos fatos, que lhe mostra,
permite-lhe tocar com os dedos e com o olhar. Não está aí um pequeno
serviço que ele presta à Humanidade, à religião? Mas não é tudo: a
certeza da vida futura, o quadro vivo daqueles que nela nos antecederam,
mostram a necessidade do bem, e as conseqüências inevitáveis do mal. Eis
porque sem ser, em si mesmo, uma religião, ele leva essencialmente às
idéias religiosas, as desenvolve naqueles que não as têm e as fortifica
naqueles em que elas são hesitantes. A religião, pois, encontra nele um
apoio, não para essas pessoas de vista estreita que a vêem inteiramente
na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas para
aqueles que a vêem segundo a grandeza e a majestade de Deus.
Em uma palavra, o Espiritismo engrandece e eleva as idéias; ele
combate os abusos engendrados pelo egoísmo, a cupidez, a ambição; mas
quem ousaria proibi-los e deles declarar-se vencedor? Se ele não é
indispensável à salvação, facilita-a consolidando-nos no caminho do bem.
Qual é, aliás, o homem sensato que ousaria adiantar que um defeito do
ortodoxo é mais repreensível aos olhos de Deus do que do ateu e do
materialista? Eu coloco honestamente as questões seguintes a todos
aqueles que combatem o Espiritismo relativamente às suas conseqüências
religiosas:
1. – Qual é o pior dotado na vida futura, aquele que não crê em nada
ou aquele que, crendo nas verdades gerais, não admite certas partes do
dogma?
2. – O protestante e o cismático estão confundidos na mesma
reprovação do ateu e do materialista?
3. – Aquele que não é ortodoxo, no rigor da palavra, mas que faz todo
o bem que pode, que é bom e indulgente para com o seu próximo, leal em
suas relações sociais, está menos garantido de sua salvação que aquele
que crê em tudo, mas que é duro, egoísta e descaridoso?
4. – Qual vale mais aos olhos de Deus: a prática das virtudes cristãs
sem as do dever da ortodoxia, ou a prática destes últimos sem as da
moral?
Eu respondi, senhor abade, às questões e às objeções que me haveis
dirigido, mas, como vos disse inicialmente, sem nenhuma intenção
preconcebida de vos conduzir às nossas idéias e mudar vossas convicções,
limitando-me a vos fazer examinar o Espiritismo sob seu verdadeiro ponto
de vista. Se não tivésseis vindo eu não vos teria procurado. Isso não
quer dizer que desprezemos vossa adesão aos nossos princípios se ela
deva ter lugar; bem longe disso; somos felizes, ao contrário, com todas
as aquisições que fazemos e que têm para nós tanto maior valor quanto
sejam livres e voluntárias. Não temos nenhum direito para constranger
quem quer que seja e teríamos escrúpulo em perturbar a consciência
daqueles que, tendo crenças que os satisfazem, não vêm espontaneamente a
nós.
Nós dissemos que o melhor meio de se esclarecer sobre o Espiritismo é
estudando previamente sua teoria; os fatos virão naturalmente em
seguida, e serão compreendidos, qualquer que seja a ordem na qual os
conduzam as circunstâncias. Nossas publicações são feitas com o objetivo
de favorecer esse estudo; eis, a esse respeito, o roteiro que
aconselhamos.
A primeira leitura a fazer-se é a deste resumo que apresenta o
conjunto dos pontos mais destacados da ciência; com isso, já se pode
fazer dela uma idéia e se convencer de que, no fundo, há alguma coisa
séria. Nesta rápida exposição fomos levados a indicar os pontos que
devem, particularmente, fixar a atenção do observador. A ignorância dos
princípios fundamentais é a causa das falsas apreciações da maioria
daqueles que julgam o que não compreendem ou segundo suas idéias
preconcebidas.
Se este primeiro contato dá o desejo de sobre ele se saber mais,
ler-se-á O Livro dos Espíritos, onde os princípios da doutrina
estão completamente desenvolvidos; depois, O Livro dos Médiuns
para a parte experimental, destinado a servir de guia para aqueles que
querem operar por si mesmos, como para aqueles que querem se inteirar
dos fenômenos. Vêm, em seguida, as diversas obras onde estão
desenvolvidas as aplicações e as conseqüências da doutrina, tais como:
A Moral do Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno Segundo
o Espiritismo, etc.
A Revista Espírita é, de alguma sorte, um curso de aplicação,
pelos numerosos exemplos e os desenvolvimentos que ela encerra, sobre a
parte teórica e sobre a parte experimental.
Às pessoas sérias, que tenham feito um estudo prévio, teremos prazer
em dar, verbalmente, as explicações necessárias sobre os pontos que não
tenham compreendido inteiramente. |